Friday, September 26, 2008

2028

Olhava atentamente as cores se misturando. Tudo passava muito rápido. Nem conseguia acompanhar a velocidade do a-z-u-l e do b-r-a-n-c-o daquele passarinho gigante, de bico engraçado, que voava baixinho pela Rua Grande. Essa Rua Grande tinha aparecido uns dois aniversários atrás, bem no meio de uma lagoa muito bonita, a Lagoa Rodrigo não sei das quantas. Meu Vovô falava que esse S-a-m-b-r-ó-d-o-m-o era uma verruga no lindo rosto do Rio. Eu não entendia muito bem o que verruga queria dizer, mas também não me importava. Sem a Rua Grande não existiriam esses tubos, que minha maninha mais velha chama de elevador. Eu achava um barato: a gente subia e descia muito rápido, mas não deixavam a gente brincar mais de uma vez. Mamãe me fez subir mais e fiquei impressionado: estava sentado numa cadeira muito mais alta que as que sentava para não derramar papinha. Eu abria e fechava os braços tentando imitar o passarinho gigante, que voava até uma estátua de braços abertos. Minha maninha mais velha começou a bater palminhas. C-a-r-n-a-v-a-l, ela dizia. Não queria bater palminhas, mas também não tem importância. Ela sempre me dava muitos beijinhos, fazia cosquinha no meu pé, e assoprava meu ouvido. Quando meus pais saiam de casa então, nem se fala. Ela puxava fumaça de um negócio com cheiro estranho, e aí me beijava tanto que me deixava todo babado. Enquanto minha irmã estragava minha coreografia, entrou na rua grande um monte de robôs gigantes. Aquilo fez que todas as pessoas se levantassem e batessem palmas. Mais palmas do que quando a gente canta o parabéns. Não gostava daqueles robôs gigantes. Tinham umas tias sem roupas com os mamás balançando, do mesmo jeito que minha mãe ficava quando um tiozinho ia de moto lá em casa. Ele era esperto: só machucava a Mamãe quando Papai não estava e antes da minha maninha mais velha voltar da escola. Toda vez que ele aparecia deixava Mamãe com muita dor, ela gritava tanto dentro do quarto que eu nem conseguia dormir. A lembrança daquele tiozinho me deixava com tanta raiva que comecei a chorar. E Mamãe a me balançar. Mamãe não parou de me balançar nem quando entraram umas vovós com vestido branco, rodando sem parar, em cima de um barco. Embaixo vi vários amiguinhos para brincar, todos sem camiseta, sem tênis, sem mamãe, sendo arrastados por uns tios. Também queria tirar meus tênis. Mamãe nos levantou quando uns robôs menores, agitando os braços ao mesmo tempo, soltaram um som que todo mundo começou a dançar. Até mamãe começou a dançar comigo. Papai se animou tanto que dançou com a Dinda que olhava como se ele tivesse feito maldade. Mamãe não gostou nem que papai começou a dançar, muito menos da cara da Dinda. Ela me largou na cadeira dela, pegou o aparelho que eu adorava morder e eles adoravam falar e saiu sozinha, dizendo que tinha mais o que fazer, que ia se cuidar. Papai me deu um sorvete falando que já voltava, e foi atrás da mamãe, acho que pra fazer curativo nos dodóis que o tiozonho fazia nela. Parei de chorar. Adorava me sujar com sorvete. Além do mais minha maninha mais velha estava comigo. E ela sempre me enchia de beijinhos quando puxava fumaça de um negócio com cheiro estranho, como ela estava fazendo com um moço naquele momento. Só que dessa vez ela não me deixou babado. Nem me deu beijinho. Dois tios, que mais pareciam robôs vestindo a-z-u-l e b-r-a-n-c-o, pegaram minha maninha mais velha e o moço. Pegaram tão forte que minha maninha mais velha nem conseguiu me levar. Talvez era hora de ir embora e ninguém tinha me avisado. Tirei rapidinho o tênis que estava me apertando. Parece que vi minha maninha lá em baixo. Desci da cadeira. Fiquei maravilhado com a imensidão de cores de saias e bermudas que minha visão atingia. Com o calor, arranquei minha camiseta. Vi os tubos que não deixavam brincar mais de uma vez. Talvez lá encontrasse a mamãe e o papai, talvez lá ganhasse mais sorvete. Um gigante tio que parecia um robô vestido de a-z-u-l e b-r-a-n-c-o pegou bem forte no meu braço, falando que ali não era meu lugar. Eu sabia que o meu lugar era lá nas cadeiras voadoras, mas nem imaginava que ele ficaria tão bravo a ponto de me arrastar pelas orelhas dali.
Olhava atentamente as cores se misturando. Tudo passava muito rápido. Nem conseguia acompanhar a velocidade do a-z-u-l e do b-r-a-n-c-o do céu entrando como uma faca cortando a escuridão. Aos poucos identificava alguns amiguinhos para brincar. Pensei como as mamães deles eram bacanas deixando as crianças saírem sem camiseta, sem tênis, sem tomar banho, sem maninha mais velha para acompanhar. E logo naquele dia ninguém queria jogar. Ninguém queria brincar. E éramos tantos naquele carro grande que dava até pra jogar futebol. Quando o homem robô parou o carro, vi que meus novos melhores amigos choravam. Lembrei que mamãe iria ficar muito brava por estar me demorando e comecei a chorar também. Acho até que meus novos melhores amigos também estivessem chorando pela mesma razão. Levei um puxão forte nos braços e fui jogado num canto com outros novos amiguinhos para sempre. O tio com jeito de robô sacou uma arminha enorme daquelas que a gente brinca de polícia e ladrão e apontou pra mim dizendo que "essa raça um dia tem que acabar". Fechei os olhos com medo da cara de malvado do tio e prometi naquela hora para meu anjo da guarda que nunca mais sairia do meu lugar. Sem querer pensei na mamãe, pensei no papai, pensei nas cosquinhas que minha maninha mais velha fazia. Ouvi um estalo, mas nem cheguei a abrir os olhos. Eu apenas sorri.